Um salve aos que vieram antes
de nós e aos que virão no decorrer do tempo. Um salve aos que ainda estão aqui,
hoje, e em sua cearensidade inventam mundos e suas formas, incendeiam a morte e
semeiam vidas, compõem o que somos e o que viremos a ser.
Falo de uma multidão de
corpos, desejos, práticas, sonhos e mistérios, universos multiformes que da
invenção à tradição reelaboram o mito de que por aqui não existe pretidão. Da
mistura de tantas cores, texturas e imaginários, do devir originário ao que nem
sequer foi nomeado, falo de um território que se levanta e colapsa o que ainda
é arraigado pela nódoa da escravidão. Não mais pelo que se esconde (ou foi
escondido) nas linhas necropolíticas de uma história escrita por mãos brancas,
mas pelo que é forjado dia a dia nas profundezas de subjetividades que não cedem
ao hiperfetiche de sua representação.
Siará Quilombo é esse lugar
por ora imaginado: sem arquitetura que afirme figuras de dominação. Território
imaterial que questiona o imperativo do empreendedor individual para detonar a
retórica meritocrática que exige uma performance excelente de nós mesmas/os,
uma performance excelente da negritude, como nos lembra Grada Kilomba. Por
isso, mesmo em diáspora, esse quilombo anuncia sua jornada subjetiva junto ao
que se ergue enquanto comunidade, enquanto destino de nossa potência coletiva.
Na verdade, nunca estivemos separados, seguimos juntos, relembrando: Ubuntu,
Siará Quilombo! Eu sou o que sou pelo que nós somos. Raiz e antena amalgamadas
para referendar um arsenal de passados, presentes e futuros que se cruzam além
e aquém do cerco fechado de uma capitania hereditária.
E sendo Nóis um grupo de
teatro que, nas periferias da vida, tem buscado reinventar os mitos sobre nossa
existência, aclamamos nosso elenco referencial, inventariando o que afeta,
perturba, alimenta e influencia nossa produção cultural. Dos becos e vielas aos
feeds do Instagram, o que apresentaremos é apenas uma parcela de um levante de
pretos e pretas que escrevem seu próprio Siará. Conectados por um contingente
de práticas, esses artistas e coletivos listados de algum modo rebatizam a
“terra alencarina”, derrubam estátuas e insígnias do racismo para, no corre da
arte, determinar nosso espaço de aliança e emancipação, de elo e de autonomia.
Também afetados pelo
inesperado de um tempo que nos tomou em espanto e levou de nosso meio a querida
Thina Rodrigues, relembramos artistas que estavam a todo vapor na vida pública
produzindo seu corre poético e que agora, assim como nós, tiveram de se adaptar
às ferramentas e às problemáticas lançadas no quente dos meios de comunicação.
Tomamos então a Espada de São Jorge como arma de proteção e autocuidado para,
saudando o povo da rua e as mediações comunicativas dos Exus, abrirmos nossas
câmeras e microfones às segundas-feiras dentro da programação do Centro Dragão
do Mar de Arte e Cultura. Não sem antes, enquanto grupo, mais uma vez anunciar:
não queremos somente mídia e visibilidade. Contrate, de forma remunerada, hoje
e agora, um artista prete do Ceará!
Altemar Di Monteiro |
@altemardimonteiro
Coordenação Nóis de Teatro |
@noisdeteatro
Grupo de teatro atuante há 18
anos na periferia de Fortaleza, onde realiza espetáculos, eventos culturais e
programas formativos com foco no protagonismo de mulheres, pretes e LGBTs.
Repertório atual: “Despejadas”, “Todo Camburão tem um Pouco de Navio Negreiro”
e “Ainda Vivas”.
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