Foto: Cromium Fotografia
Em cartaz no Rio de Janeiro
até 16/02, no Foyer do Teatro Firjan, a instalação O que nós, mulheres,
queremos? assinada pela sapateira Virginia Barros leva ao público descobertas
sobre o corpo e a sexualidade feminina através de um acessório indispensável:
os sapatos!
Virgínia Barros é gaúcha,
criada em Minas Gerais. Formada em jornalismo, cursou estilismo na UFMG, onde
mais tarde foi professora de desenho e história do calçado. Virgínia se
identifica com a nomenclatura sapateira. A criação e a execução do calçado são
o foco do seu trabalho, embora desenhe roupas e faça figurinos. Fátima
Bernardes, Fernanda Takai, Erika Januza, Katiuscia kanoro, Elba Ramalho, Lilia
Cabral, Débora Lamm, Heloísa Perissè, Maria Clara Gueiros, Bárbara Colen,
Leilaine Neubarth e Paulinho Moska já usaram figurinos da designer.
“O principal objetivo desta
instalação é mostrar o olhar de uma mulher, numa história que sempre foi feita
por homens, onde uma mulher, que é sapateira, vai tentar mostrar o que é o
desejo, a sexualidade feminina, fora desse patriarcado, desse padrão, que é o
fetiche em relação ao escarpim, por exemplo, aqui o que vale é o ponto de vista
feminino”, diz Virginia Barros.
“Na história do calçado os
homens são os protagonistas da criação, salvo raras exceções. São homens
fazendo sapatos para agradar homens. O escarpim de salto fino resiste 70 anos
sem nunca ter deixado de ser produzido. Entra moda, sai moda, ele está no
mercado. Será o motivo o fato de ser símbolo do fetiche masculino? Pensando
além do patriarcado, o que nós, mulheres, queremos?”, questiona Vírginia.
“Quando o lugar de fala é de
uma mulher, uma sapateira, começamos a pensar no que é sexy para nós. Muitas de
nós não conhecem seu próprio corpo. Estes sapatos são sensoriais, instigam a
explorar o tato. São calçados que misturam texturas de rendas, pelúcias,
veludos, camurças. Trazem formas femininas que aparecem, desde o salto e a cepa
de madeira, até a parte superior do calçado. Um convite para que nós, mulheres,
tenhamos consciência do nosso corpo, dos nossos desejos”, explica a designer
sobre as obras e sensações que o público poderá sentir.
Serviço:
Instalação Virginia Barros - O
que nós mulheres queremos?
Foyer, Teatro Firjan, Sesi
Centro: Av. Graça Aranha, 1 - Centro, Rio de Janeiro – RJ
Por Marta Neves
A exposição de Virgínia Barros
é uma espécie de território onde podemos caminhar com pés mais livres, sem a
estreita vigilância das imposições antigas, vindas dos homens que sempre
desenharam pés e moças, saltos e apertos. Eu mesma aprendi que para afinar a
perna era preciso levantar a panturrilha numa agonia que também me disseram que
era linda. Hoje tenho seis parafusos enfiados aqui pelo osso, vindos de uma
queda de um salto duro de madeira. Fico pensando nos escarpins que a artista
surrealista Meret Oppenheim, numa perspectiva crítica que só um humor sem riso
besta tem, colocou numa bandeja, amarrados e enfeitados como se costuma fazer
com esses assados finos. No caso, a “iguaria” montada pela artista era
oferecida ao deleite do fetiche masculino, a nos lembrar que a tortura do bicho
abatido é o gozo de seu comedor.
Aliás, numa história muito
antiga de quem é adestrado e criado como objeto dessa gula, as chamadas
mulheres foram fabricadas para também produzirem outros alimentos: os filhos
que engordam a força de trabalho, o esquecimento de si que alarga o prazer do
outro, a ideia de feminilidade restrita a uma virilha que nem elas mesmas devem
conhecer, cheirar, manipular bem, salvo nos banhos que abafam o caso e os
odores corporais. Lembro-me de um sujeito que conheci, faz alguns anos, que
colecionava listas de sapatos femininos, cada um com tamanho, cor, detalhes ou
estampa, altura do salto e, claro, por último, o menos importante: o nome das
moças ali dentro: “37, agulha, bicolor, Jacqueline”, “35, bico fino, salto 15,
verniz vermelho, Márcia”... “36, plataforma, oncinha, Débora”, todas servidas e
enoveladas na bandeja do desejo dele.
Então a Virgínia resolve ser
sapateira e arrebentar esses nós, inventando e moldando sapatos de outro jeito.
Teria que ser ela, de dentro dessa história a refazê-la, com texturas, cheiros,
surpresas para os pés e as mãos (sim, são sapatos que a gente toca e brinca de
descobrir), dando o troco quente e macio do toque a uma enormidade de casos de
mulheres que nunca bateram uma siririca, que viveram uma vida sexual insípida,
que tiveram medo de fazer as próprias perguntas diante de tantas respostas já
dadas, que talvez fossem até moços trans, mas morreram sem tentar pisar fora do
cerco ou da bandeja em que se prenderam, para recordar novamente o trabalho de
Oppenheim.
Esses sapatos, que lembram
seios, vaginas, que têm cheiros diversos, que não se fecham em nossos pés mas,
ao contrário, se abrem à exploração, são assim feito corpos renovados numa
outra narrativa, não mais moldados pela norma masculina de sempre, a dos homens
que o tempo todo inventaram e desenharam os acessórios femininos, a velha norma
de quem amarra e come o tal assado (da arte crítica da artista surrealista que
citei). São calçados, agora, de uma sapateira que fala, são a voz de Virgínia
junto a tantas de nós, convidando a um gosto especial por caminhar sem medo.
Marta Neves: Em 1992 formou em
cinema de animação, desenho pela Escola de Belas Artes da UFMG, já em 1999
tornou-se mestre de artes plásticas. Marta já assinou acervos, exposições
individuais e coletivas no RJ, SP e MG.
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